O dia e a noite (cadernos, 1917-1952)
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Georges Braque
Texto em apêndice de Brassaï
64 p. - 13 x 20,5 cm
ISBN 978-65-5525-209-5
2025
- 1ª edição
Ao ler os aforismos de O dia e a noite, Roberto Bolaño não hesitou: este é “um livro precioso”. Redigidos ao longo de décadas e publicados depois da Segunda Guerra Mundial, os pensamentos de Georges Braque (1882-1963) são fruto de uma lenta decantação verbal de sua experiência humana e artística. Pois Braque, nome central da pintura moderna, parceiro de Picasso na aventura do cubismo, artista fértil e longevo, foi também homem de letras. Próximo de grandes poetas como Pierre Reverdy e René Char, leitor patente da longa tradição francesa das máximas e sentenças, o pintor é capaz tanto de formulações oraculares (“Sensação, revelação” ou “O perpétuo e seu sussurro de nascente”) como de apontamentos sibilinos (“O conformismo começa pela defi nição” ou “As provas exaurem a verdade”). Mas o leitor não encontrará aqui um corpo organizado de doutrina, pois o essencial para Braque é “ter sempre duas ideias, uma para destruir a outra” e, com isso, estar à altura do mandamento máximo para a vida e para a criação: “manter a cabeça livre: estar presente”. Atingido esse estado, extintas “todas as veleidades”, nós talvez percebamos que “tudo é sono ao nosso redor” – e que “a realidade só se revela quando iluminada por um raio poético”.
Texto orelha
Quando começou a anotar seus pensamentos, aos 25 anos, Georges Braque já trazia consigo as marcas de sua participação na Primeira Guerra Mundial, conflito do qual saiu gravemente ferido. Não bastasse a guerra, o pintor havia passado por outra experiência tão marcante quanto: a invenção do cubismo, movimento que criou e protagonizou ao lado de Picasso. Estes dois acontecimentos sinalizaram de forma indelével a vida e a já promissora carreira do jovem artista.
Não surpreende, portanto, o surgimento dessas reflexões que Braque reuniria neste livrinho precioso, publicado em 1952 sob o título de O dia e a noite. Nascendo no encontro de arte e vida, elas terão servido de veículo à profundidade das indagações que Braque foi se propondo ao longo de três décadas de criação pós-guerra e pós-vanguarda. Essa necessidade de pensar — e registrar — vai acompanhá-lo durante toda a sua existência, numa atitude meditativa sempre rente a sua atividade como pintor.
O grande crítico Lionello Venturi afirmou certa vez que, no domínio da qualidade artística, o temperamento conta muito mais que a teoria. O mesmo Venturi dizia que o temperamento de Braque talvez estivesse mais próximo de uma estética clássica, e pontuava: “O grande mistério é que um homem assim tenha se tornado um dos principais inventores do cubismo”. O próprio Braque escreveu, num dos aforismos de O dia e a noite: “Não sou um pintor revolucionário, não busco a exaltação: o fervor me basta”. Para dizê-lo de outro modo: penso que, para Braque, a invenção consistia mais em valorizar a espessura que a extensão do ato artístico. Como se aprofundar lentamente as questões — no mesmo ritmo com que procedia ao elaborar suas secretas harmonias cromáticas — fosse mais importante que exacerbar as ações, em contraste marcado com a maneira de Picasso.
Lidas em seu conjunto, essas pensées de Braque são como que as balizas, os marcos de milha desse modo de sentir, pintar e pensar. Para dizer pouco, são inteligentes, perspicazes e mesmo espirituosas. Mais ainda: de modo muito próprio, parecem obedecer também a uma índole dialética, que se movimenta por meio de pares de opostos, num pêndulo que nos leva da tese à antítese (e nem sempre com a síntese à vista). Não causa espanto, pois, que o livro leve o título, também ele antitético, de O dia e a noite, a sinalizar o pouco apreço de Braque pela adesão a definições fáceis. Não por acaso, uma das sentenças cruciais do livro ensina: “Jamais aderir”.
Tenho a impressão de que alguns desses aforismos são como que lições que, no recolhimento do ateliê, Braque gostava de repetir para si mesmo; outros têm uma aptidão mais pública e talvez até um calibre mais filosófico (pascaliano?). O certo é que vão além do testemunho biográfico ou do juízo de gosto, para atingir camadas mais profundas e insuspeitas da arte e da vida. Como pintor, de muito me valem essas reflexões: em tempos tão imediatistas como os nossos, em que o discurso sobre a arte parece levar a melhor sobre a obra singular, nada melhor que um pensamento encarnado e derivado do fazer, um pensamento que nos reabre os olhos para certas qualidades e possibilidades esquecidas. Ler que “a ideia é o berço do quadro” e, pouco depois, que “o quadro está terminado quando apagou a ideia” talvez nos devolva a uma ordem de experiência que faz muita falta. Afinal, e parafraseando o autor, “na arte só vale uma coisa: o que não se pode explicar”.
Paulo Pasta
Sobre o autor
Nascido em 1882, em Argenteuil, na França, Georges Braque cresceu em um meio artesanal de pintores-decoradores. Começou a estudar belas-artes ainda jovem, no Havre, para depois seguir os estudos em Paris, onde se instalou nos primeiros anos do século XX. Uma vez ali e imerso em um meio artístico em plena efervescência, cumpriu rapidamente um percurso que, marcado de início pela influência de Matisse e dos fauves, levou-o a um estudo aprofundado de Cézanne e, já a partir de 1907-1908, a suas primeiras telas de marca a um só tempo pessoal e radical, entre as quais alguns nus e diversas paisagens de L’Estaque. Entre 1908 e o começo da Primeira Guerra Mundial, protagonizou ao lado de Picasso os anos heroicos de reinvenção da pintura em chave “cubista” — então, um neologismo recente. Ferido em combate em 1915, só voltaria a pintar ao fim do conflito, inaugurando uma longa e fértil atividade em que a experiência cubista foi se desdobrando em outras direções, quase sempre a partir de alguns motivos visuais constantes, como os pássaros e os instrumentos musicais. Durante a Segunda Guerra Mundial, permaneceu na França, mantendo ciosamente distância tanto dos invasores nazistas como do regime do marechal Pétain. Depois da guerra, prosseguiu produzindo com constância até seu falecimento em Paris, em 1963.
Sobre o tradutor
Samuel Titan Jr. nasceu em Belém, em 1970. Estudou Filosofia na Universidade de São Paulo, onde leciona Teoria Literária e Literatura Comparada desde 2005. Editor e tradutor, organizou com Davi Arrigucci Jr. uma antologia de Erich Auerbach (Ensaios de literatura ocidental) e assinou versões para o português de autores como Adolfo Bioy Casares (A invenção de Morel), Charles Baudelaire (O Spleen de Paris), Gustave Flaubert (Três contos, em colaboração com Milton Hatoum), Jean Giono (O homem que plantava árvores, em colaboração com Cecília Ciscato), Voltaire (Cândido ou o otimismo), Prosper Mérimée (Carmen), Eliot Weinberger (As estrelas), José Revueltas (A gaiola) e Blaise Cendrars (Diário de bordo).
Veja também
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