Um milhão de ruas: crônicas 2010-2025
| |
Fabrício Corsaletti
416 p. - 14 x 21 cm
ISBN 978-65-5525-243-9
2025
- 1ª edição
“Escrever é parecido com andar”, crava Fabrício Corsaletti na nota de abertura deste livro. E para acompanhá-lo não é preciso ter sapatos especiais: basta abrir os ouvidos e se deixar levar pelo ritmo. Um milhão de ruas reúne cerca de 190 textos escritos entre 2010 e 2025, vários deles inéditos. Se a maioria é composta por crônicas no sentido corrente do termo, uma boa parte escapa às definições e se aproxima do conto, do poema, da prosa poética afiada como uma lasca ou, ainda, da pura notação lírica e, no limite, do aforismo.
Essa multiplicidade de registros corresponde a uma multiplicidade de formas de apreender e experimentar o mundo, que aqui comparece com todo o seu fascínio. Há lances geniais, como o encontro com as três bandeirianas mulheres do sabonete Araxá, percepções agudas da tragédia brasileira despertadas por uma rua cheia de sapos, saltos mortais de alegria e/ou desespero e uma agulha imantada que aponta dia e noite para a aventura e o desconhecido.
Em dezenas de textos notáveis, a matéria do cotidiano se abre para outras dimensões e revela o andamento espantoso da vida contemporânea. Tudo isso graças a um olhar lírico-cinematográfico e a uma escrita que incorporou a inteligência e a leveza de mestres da crônica como Rubem Braga, dos compositores da MPB, reverenciados nestas páginas, e bebe na boa literatura de todos os quadrantes. Diante deste livro fabuloso, o melhor é não ter pressa e percorrê-lo rua a rua, sabendo que a poesia arma seu bote a cada esquina.
Texto orelha
Fabrício Corsaletti é — acima de tudo e 24 horas por dia — um poeta. O leitor talvez estranhe que esta afirmação venha a propósito não de um livro de poemas, mas da reunião de seus dois livros de crônicas publicados até agora, Ela me dá capim e eu zurro (2014) e Perambule (2018), além do inédito Bar Mastroianni. Contudo, é justamente neste Um milhão de ruas que essa característica se torna mais evidente. É o próprio Corsaletti quem comenta em “Delitos portenhos”: “E meu negócio é poesia. Escrevo prosa só de vez em quando. Não tenho a ambição de virar ficcionista”. Corsaletti é 100% poeta não apenas na maneira como escreve, mas talvez fundamentalmente no modo como habita e enxerga o mundo. Não por acaso, diz ele em “Deserto”: “A vida é um longo poema lírico”. O que Gilberto Freyre observou acerca de Flávio de Carvalho, no prefácio ao livro Os ossos do mundo, poderia muito bem ser estendido a Corsaletti: “arregala olhos de menino e às vezes de doido para ver o mundo”. Em função disso, “vê tanta coisa que o adulto todo sofisticado não vê”. E o mais importante: “Vê tantas relações entre as coisas que os adultos cem por cento e os completamente normais deixam de ver”. Muito antes de Gilberto Freyre, em O pintor da vida moderna, Charles Baudelaire (cuja obra Corsaletti glosa em “53”, ao afirmar e reafirmar que “É preciso estar sempre bêbado”) relaciona o “homem de gênio”, figura mais geral que inclui o poeta, à criança, porque esta “vê tudo como novidade; ela está sempre inebriada”. Por isso, para o poeta francês: “Nada se assemelha mais àquilo que chamamos de inspiração do que a alegria com a qual a criança absorve a forma e a cor”. É deste modo que ele compreende o pintor Constantin Guys — numa definição que também poderia muito bem se aplicar a Corsaletti: “considerem-no também como um homem-criança, como um homem que possui, a cada minuto, o gênio da infância, isto é, um gênio para o qual nenhum aspecto da vida está embotado”. As crônicas reunidas em Um milhão de ruas fazem supor que ainda está para ser criado o que não fascine Corsaletti. Ele se deixa encantar pelos objetos e motivos mais variados: cavalos, música, uma casa colonial perdida no meio do campo, os anjos do Aleijadinho, todos os bares do planeta etc. E, aos seus olhos, um simples passeio se transforma numa aventura — seja no centro de São Paulo, no bairro da Liberdade ou no mercado de Pinheiros. Por isso, ele é capaz de dizer em “Os trovadores”: “eu me divirto de qualquer jeito”. Ou ainda, em “Procurando sombras”: “Eu amava todas as cidades, mesmo as horríveis”. Só um homem-criança, um poeta com um sentimento aguçado e aberto em relação ao mundo, poderia dizer a respeito de uma metrópole tão devastadoramente grande e desigual como São Paulo: “como é frágil uma cidade”. Um milhão de ruas é, antes de tudo, um convite a não nos fecharmos ao assombro das coisas ao nosso redor. Com sorte, se cumprirmos a lição do poeta à risca, talvez acabemos como ele, que assim descreve o fim de uma jornada em “Visita a Ferreira Gullar”: “Eu estava livre. Nasci pra ser livre. Sou bom em ser livre, por incrível que pareça”.
Veronica Stigger
Sobre o autor
Fabrício Corsaletti nasceu em Santo Anastácio, no Oeste Paulista, em 1978, e desde 1997 vive em São Paulo. Formou-se em Letras pela USP e em 2007 publicou, pela Companhia das Letras, o volume Estudos para o seu corpo, que reúne seus quatro primeiros livros de poesia: Movediço (Labortexto Editorial, 2001), O sobrevivente (Hedra, 2003) e os inéditos História das demolições e Estudos para o seu corpo. Na sequência vieram Esquimó (Companhia das Letras, 2010, Prêmio Bravo! de Literatura), Quadras paulistanas (Companhia das Letras, 2013), Baladas (Companhia das Letras, 2016), Roendo unha (Pedra Papel Tesoura, 2019), São Sebastião das Três Orelhas (Fósforo/Luna Parque, 2023) e La ley del deseo y otras películas (Corsário-Satã, 2023). Também é autor dos contos de King Kong e cervejas (Companhia das Letras, 2008) e da novela Golpe de ar (Editora 34, 2009), além dos infantis Zoo (Hedra, 2005), Zoo zureta (Companhia das Letrinhas, 2010), Zoo zoado (Companhia das Letrinhas, 2014), Poemas com macarrão (Companhia das Letrinhas, 2018), Pão na chapa (Companhia das Letrinhas, 2022) e O livro dos limeriques (Editora 34, 2024). Traduziu 20 poemas para ler no bonde, do argentino Oliverio Girondo (Editora 34, 2014), em parceria com Samuel Titan Jr., e Poemas humanos (Editora 34, 2021), do peruano César Vallejo, em parceria com Gustavo Pacheco. Uma antologia bilíngue de seus poemas, com tradução para o espanhol de Mario Cámara e Paloma Vidal, saiu na Argentina sob o título Feliz con mis orejas (Lux/Grumo, 2016). Engenheiro fantasma (Companhia das Letras, 2022), seu último livro de poesia, foi o vencedor do prêmio Jabuti 2023 nas categorias Poesia e Livro do Ano.
Veja também
|