O avesso das palavras
história da cultura e crítica da linguagem, 1901-1924
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Fritz Mauthner
Organização e apresentação de Márcio Suzuki
Projeto gráfico de Raul Loureiro
488 p. - 15 x 22,5 cm
ISBN 978-65-5525-180-7
2024
- 1ª edição
Fritz Mauthner (1849-1923) é hoje pouco mais que um ilustre desconhecido, lido por um punhado de estudiosos fiéis na academia. Mas nem sempre foi assim: jornalista e escritor de prestígio em fins do século XIX, Mauthner desfrutou de grande voga quando, nas primeiras décadas do XX, lançou-se a um projeto filósofico rebelde e radical. Cristalizada à perfeição nas Contribuições a uma crítica da linguagem (1901-1902) e no Dicionário de filosofia (1910-1924), sua escrita filosófica não dá quartel: é preciso exercer o ceticismo até o fim, atacando, com as armas do adversário, a suposta capacidade da linguagem e da filosofia de representar o mundo. Filosofia é crítica da linguagem — e definir conceitos não pode ser outra coisa senão esvaziá-los daquela substância que pretendiam conter até que se evidencie aquilo de que são feitos: uma rede verbal constituída pela metáfora, pela fabulação, pelo mito. Para levar a cabo a tarefa, entra em cena um estilo irônico que só encontra par nas mais refinadas florações literárias daquele Império Austro-Húngaro em que o autor viveu e escreveu. Com uma singularidade, porém. Mauthner amplia o domínio da ironia, a quem cabe agora o desmantelamento das ambições da linguagem e da filosofia — na contramão, logo se vê, de seu conterrâneo Wittgenstein, que confiava à lógica tarefa diametralmente oposta.
Primeira tradução de Mauthner para o português, O avesso das palavras é uma seleta generosa de suas obras principais. Com este volume, organizado por Márcio Suzuki, o leitor brasileiro poderá travar contato com um elo decisivo da tradição filosófica que vem dos românticos alemães e passa por Schopenhauer, Nietzsche e Brandes. Ao mesmo tempo, poderá julgar em primeira pessoa (seja lá o que isso for...) o fôlego de um ensaísta que cativou alguns dos nomes centrais da literatura modernista, de Joyce e Beckett a Jorge Luis Borges.
Texto orelha
Não por acaso a biblioteca pessoal de Guimarães Rosa guardava um exemplar do Dicionário de filosofia de Fritz Mauthner (1849-1923). Judeu de Praga, como Kafka, Mauthner estudou Direito ali, ganhou a Berlim da virada dos 1900 e lá fez fama como novelista, polímata, estilista (e ironista) soberbo da língua alemã. Ensaísta originalíssimo, linguista e filósofo da linguagem autodidata, fazendo pouco da timidez do saber especializado, atraiu uma seleta e genial coorte de leitores entusiasmados entre aqueles que responderam pelo melhor da literatura modernista do século XX — Borges, Joyce e Celan puxando o pelotão em que o próprio Rosa não destoa nada.
Vemos mal o mundo e o dizemos igualmente mal. Tudo se passa como na anedota que Beckett, outro dos admiradores rendidos de Mauthner, incorpora a Watt, seu romance mais explicitamente crítico do modo como os homens recobrem o silêncio do mundo com sentidos ruidosos e vazios: “Não desça pela escada, Iffor, acabo de leffá-la embora”. A linguagem é essa escada ausente que os homens constroem, compactando sentidos diversos nas mesmas palavras, nivelando provisória e precariamente memórias sensíveis únicas, individuais e irredutíveis. Contra toda miragem substancialista, a linguagem é um quid pro quod produtivo que jamais tocará a realidade. O rigor amoroso e desconfiado com que Mauthner explora essa convicção é fascinante.
O avesso das palavras recria essa presença literária e filosófica singular, teoricamente imaginativa e inconcessiva, que combina conceitos e imagens filosóficas, estudo erudito e implicância apaixonada, aplicados aos mais variados objetos presos à rede da linguagem: a filosofia de Hume e Kant, a etimologia perita e lúdica (Benveniste reescrito por Borges), a física contemporânea mais avançada (foi aluno informal de Ernst Mach), o evolucionismo darwiniano, a neurociência e a psicologia cognitiva, a memória, a senciência e a consciência. Este livro organizado por Márcio Suzuki faz ouvir essa voz timbrada por uma desconfiança sem tréguas contra a arrogância de um mundo conhecido e dominado pelas palavras.
De quebra, O avesso das palavras realiza a proeza de apresentar, em uma antologia relativamente breve, o sumo do ceticismo radical, do historicismo avisado, do nominalismo feroz com que Mauthner considerou longamente as relações entre linguagem, realidade, filosofia, arte e misticismo, reunindo passagens seletas de suas alentadas Contribuições a uma crítica da linguagem (1901-1902) e do igualmente volumoso Dicionário de filosofia (1910-1924). Coroa esta edição, impecável, a Exposição de minha filosofia, balanço autobiográfico de uma vida e de uma obra ainda inexplicavelmente conhecidas por poucos.
Fábio de Souza Andrade
Sobre o autor
Fritz Mauthner nasceu em 1849, em Horice, cidade localizada ao norte da atual República Tcheca, de uma família de judeus não praticantes que se mudou para Praga quando ele tinha seis anos. Ingressou no curso de Direito, mas, sem vocação para o estudo das leis, frequentava aulas de outras disciplinas. Com a morte do pai, abandonou a universidade e passou a se dedicar à literatura e à crítica de teatro, mudando-se em 1876 para Berlim. Em 1878, casou-se com Jenny Ehrenberg, com quem teve uma filha, Grete. Na capital alemã, fez nome com publicações em diversos periódicos, chegando a se tornar, em 1895, editor do Berliner Tageblatt, um dos maiores jornais da Alemanha. Também se consagrou como escritor, tendo publicado peças paródicas, romances e teatro. Em 1893 retomou um projeto iniciado durante os anos universitários: passou a redigir suas Contribuições a uma crítica da linguagem, que viriam a ser publicadas em 1901-1902. Em Freiburg, no sul da Alemanha, onde se estabeleceu após ter ficado viúvo, conheceu sua segunda esposa, Harriet Straub. Em 1909 o casal se transferiu para Meersburg, onde a esposa, médica e escritora, encampou a bandeira do marido, ajudando-o nos trabalhos de pesquisa para o seu Dicionário de filosofia, publicado em 1910. Mauthner escreveu ainda monografias dedicadas a Aristóteles (1904) e a Espinosa (1906), o livro A linguagem (1907), uma narrativa sobre Buda (1913) e a obra em quatro volumes O ateísmo e sua história no Ocidente (1920-1923). Em 1923 morreu aquele que era chamado “O Buda do Lago de Constança”, alusão à sua sabedoria mística e à vida retirada de seus últimos anos.
Sobre os tradutores
Juliana Ferraci Martone é graduada em Filosofia e doutora pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Parma (Itália). É professora do Departamento de Línguas Modernas (Alemão) da USP. Traduziu, entre outros, Sobre a doutrina de Espinosa em cartas ao senhor Moses Mendelssohn (Editora da Unicamp, 2021).
Laura de Borba Moosburger de Moraes é graduada e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, doutora em Filosofia pela USP e pós-doutoranda na UFSCar. Traduziu Martin Heidegger, Georg Trakl e Rainer Maria Rilke.
Marcella Marina Medeiros Silva fez graduação e mestrado em Filosofia na Universidade de São Paulo e formação em psicanálise no Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo. Traduziu E. T. A. Hoffmann, Thomas Mann, Edmund Husserl e as Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena (Scriptorum, 2015)
Márcio Suzuki é professor de Estética do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, pesquisador do CNPq e autor de O gênio romântico (Iluminuras, 1998) e de A forma e o sentimento do mundo (Editora 34, 2014). Fez pós-doutorado na École Normale Supérieure, em Paris. Traduziu Voltaire, Kant, Schiller, Friedrich Schlegel, Schelling, Heine, Husserl, Karl Kraus, Thomas Mann, Elias Canetti e Hans Magnus Enzensberger; recentemente organizou, para a Biblioteca Pólen da Editora Iluminuras, o volume Para uma metafísica do sonho, seleção de textos de Arthur Schopenhauer, e, para a coleção Fábula da Editora 34, O avesso das palavras: história da cultura e crítica da linguagem, 1901-1924, coletânea de escritos do filósofo judeu-boêmio Fritz Mauthner.
Veja também
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