Arquitetura e trabalho livre I:
O canteiro e o desenho e seus desdobramentos
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Sérgio Ferro
Organização e apresentação de Pedro Fiori Arantes
296 p. - 16x23 cm
ISBN 978-65-5525-212-5
2024
- 1ª edição
Arquitetura e trabalho livre I abre uma série de volumes que reúne escritos de Sérgio Ferro, arquiteto, pintor e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (1962-1971) e da École d’Architecture de Grenoble (1973-2003).
Neste primeiro volume está O canteiro e o desenho, seu mais importante e polêmico trabalho. O título aparentemente simples pressupõe a complexidade de toda uma experiência histórica em que a arquitetura teve papel destacado, culminando na construção de Brasília. Ainda como estudante, o autor já colaborava em projetos para a nova capital e, no decorrer das obras, intuiu que a mesma lógica autoritária unia o desenvolvimentismo dos anos JK e o modernismo de Niemeyer às negociatas de velho estilo e a uma brutal exploração do trabalho humano. Tudo em grande escala. Essa experiência levou Sérgio Ferro a considerar o período ditatorial pós-1964 como relativa continuidade do precedente, mas não impediu que radicalizasse suas posições políticas até a prisão, a tortura e o exílio. Por isso, O canteiro e o desenho foi redigido longe do Brasil. Publicado em 1976, desde então vem provocando todo o establishment da arquitetura. A crítica que faz do projeto arquitetônico como instrumento para a acumulação de capital, por meio da mais degradante condição para o trabalho humano dentro do canteiro, abrange um arco que vai de Brunelleschi (1377-1446) a Le Corbusier (1887-1965), continuando até hoje quase sem brechas. Nestas, porém, Sérgio Ferro vislumbra outra prática, fundada no que chama de trabalho livre, apontando para uma sociedade igualitária, sem o jugo do capital.
Completam esta nova edição considerações do próprio autor sobre os debates suscitados por O canteiro e o desenho, uma apresentação de Pedro Fiori Arantes, organizador do volume, além de textos explicativos assinados por Paulo Bicca, Vincent Michel e Pierre Bernard.
Texto orelha
Acompanhando de perto a modernização autoritária do Brasil na década de 1960 e a França pós-1968, Sérgio Ferro desenvolveu pesquisas empíricas, históricas e teóricas que revolucionaram a crítica de arquitetura. Observando de perto a obra colossal de Brasília, o mercado imobiliário e a produção de luxo em São Paulo, as favelas nos morros e várzeas de Santos e, a partir da França, percorrendo quinhentos anos de arquitetura europeia, o autor propôs um novo ângulo para a história e teoria da arquitetura. Indicou a necessidade do estudo meticuloso da produção do espaço, especialmente nos canteiros de obras, sob o ângulo do conflito capital-trabalho, e como este se plasma nos materiais, na técnica, na forma construída e na ideologia arquitetônica. Seu ensaio clássico que impactou gerações, escrito já no exílio francês, O canteiro e o desenho (1976), é aqui reeditado com uma introdução inédita do autor e um comentário de 2003, após trinta anos ensinando na Escola de Arquitetura de Grenoble. O livro inclui também três textos de discípulos seus, apresentações de O canteiro e o desenho, no Brasil e na França. A abordagem de Sérgio Ferro é até hoje incomum e desconcertante no campo da arquitetura e mesmo da crítica progressista. Ao olhar a arquitetura pelo ângulo do trabalho da construção, como um método benjaminiano de história a contrapelo, Sérgio permitiu uma abertura de perspectiva inovadora, além de uma escolha ética e política. Procurou compreender como a luta de classes no canteiro, a organização capitalista da produção do espaço construído, as mudanças na tecnologia e nos materiais, o papel da ideologia, a alienação e o fetiche da forma arquitetônica impuseram sucessivas derrotas aos trabalhadores. Os construtores, que já foram a vanguarda das lutas revolucionárias, inclusive na Comuna de Paris e na liderança de importantes sindicatos e movimentos populares em diversas regiões do planeta, foram derrotados pelo capital da construção — e pelos arquitetos e engenheiros. Ao contrário do que se diz, a crítica radical de Sérgio Ferro não é paralisante e sem saída. O autor vê a produção do ambiente construído como um espaço fundamental para a retomada do poder e do saber pelos trabalhadores. Se associados livremente, os trabalhadores poderiam recuperar o controle deste setor crucial na reprodução da vida. É precisamente a natureza “atrasada” da construção, caracterizada pela baixa mecanização e pelo capital fixo simples em comparação com a grande indústria, que permite que ela se torne um campo fértil para a experimentação caso a dominação cesse. Superar o contraditório “produção/dominação” na arquitetura permitiria que os locais de construção se transformassem em vastos campos de experiência em “trabalho livre”, autogestão e produção coletiva de conhecimento. Nestas circunstâncias, a arquitetura poderia novamente ser entendida como arte, na definição de William Morris: “art is joy in labour”. Neste local emancipado, onde a arquitetura e o trabalho livre se encontram, Sérgio Ferro vislumbra também uma nova estética. Para além da correta prescrição de um desenho atento aos materiais e técnicas locais, ela nasceria da livre organização do trabalho e do diálogo entre equipes. O projeto arquitetônico não seria abandonado, mas sobretudo reinventado. A ação coletiva organizada exigiria ainda que se partisse de um “projeto” — um projeto que prefigura a união de equipes, enquanto estas, por sua vez, devem centrar-se no seu saber de ofício e no respeito aos materiais. Nesta transformação, o ego do arquiteto, manifestado no virtuosismo do seu projeto, é substituído pelo sujeito coletivo que ganha autoconsciência como produtor e poeta do espaço. Isto faria da arquitetura a mais digna das artes, pois estaria intimamente ligada ao seu fundamento: o trabalho — ou a comunidade de livres construtores.
Sobre o autor
Sérgio Ferro nasceu em Curitiba, em 1938, e foi, durante mais de quarenta anos, professor de História da Arte e da Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (1962-1971) e na École d’Architecture de Grenoble (1973-2003). Foi também diretor do Laboratoire de Recherche Dessin/Chantier do Ministério da Cultura da França. Em sua atividade de pesquisador seguiu o ensinamento de Flávio Motta: além dos procedimentos habituais da tradição universitária, a pesquisa deve incluir a experimentação prática. Assim, a maioria de sua obra em arquitetura (associado com Flávio Império e Rodrigo Lefèvre), como em pintura, é constituída por experiências nas quais sua teoria, de fundamento marxista, é diversamente testada. A teoria conduz, entretanto, a resultados praticamente opostos nestas duas áreas, em função de seus posicionamentos diversos na produção social. Em consequência, os dois volumes de Artes plásticas e trabalho livre são o complemento em negativo de Arquitetura e trabalho livre (2006, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Ciências Humanas). Tem pinturas em diversos museus internacionais e obra de arquitetura classificada como monumento histórico. É Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres, nomeado pelo governo da França em 1992.
Veja também
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