Cabeça de galinha no chão de cimento
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Ricardo Domeneck
128 p. - 14 x 21 cm
ISBN 978-65-5525-171-5
2023
- 1ª edição
Prêmio Literário Biblioteca Nacional 2024 ** Vencedor do Prêmio Jabuti 2024 - melhor livro de poesia
Com uma dezena de livros publicados no Brasil nos últimos vinte anos, antologias na Holanda, Alemanha e outras a caminho, Ricardo Domeneck, nascido no interior paulista e radicado em Berlim, é uma das vozes mais autênticas da poesia brasileira contemporânea e uma referência na lírica amorosa homoerótica.
Cabeça de galinha no chão de cimento aprofunda outra senda de sua produção: a do retorno às origens, aos ancestrais, às memórias da infância e adolescência no interior, fortemente contrastadas pelo tempo e pela experiência de vida no exterior, numa tentativa de compreensão de seu lugar e de seu estar no mundo.
Nesse exercício psicanalítico e antropológico, vêm à tona anseios, conflitos e traumas, bem como elos e intuições poderosas, que aqui se desdobram numa lírica dos afetos e da alteridade — seja em relação aos antepassados, a poetas de sua geração ou a outras espécies animais —, sempre atravessada pelo erotismo, que, como já apontou o crítico Gustavo Silveira Ribeiro, atua em sua poética como “um campo de força a partir do qual pensar não só os seus próprios gozos e lástimas, mas também algumas das contradições mais agudas do seu tempo”.
Texto orelha
Para uma sensibilidade estereotipicamente contemporânea, pode parecer antiquado o gesto com que Ricardo Domeneck escolheu abrir este seu novo livro, dedicando-o à memória de seus quatro avós. Porém, basta prestar atenção aos sintéticos retratos desses antepassados a um só tempo tão próximos e tão distantes, que o poeta oferece junto aos seus nomes ainda neste passo liminar (e os quais desdobra na magistral sequência de poemas iniciais), para perceber que o anacronismo aí posto em ação é muito mais abrangente e profundo, constituindo parte essencial da força própria do livro. Para além das características que singularizam cada um dos avós, há uma que é comum a todos — e que o poeta faz questão de frisar antes de qualquer outra: os quatro eram analfabetos. Esse analfabetismo não é um dado episódico, mas o núcleo mesmo do legado — que comporta, a um só tempo, a inevitabilidade, o desejo e a dificuldade de herdar — reivindicado ao longo dos poemas mais marcantes aqui reunidos. Afinal, como fica evidente ao longo da leitura, longe de ser simplesmente a forma de uma falta, o analfabetismo dos avós, para o neto poeta deslocado para o mundo das letras (e esse deslocamento, por mais que seja emancipador, comporta sempre alguma violência), é também a forma de uma sabedoria em certa medida perdida — ou, mais exatamente, de um conjunto vasto e heterogêneo de saberes e práticas lançados para as margens e para os avessos do presente pela torrente da modernização e, por isso mesmo, repetidamente invocados e reencontrados nos seus versos. Para aquele que se dispõe a observar, como diz no incipit de um poema, a “história da terra/ no próprio corpo”, o cafuné, esse gesto aparentemente singelo que concentra muitas das contradições e das complexidades de uma sociedade ferida definitivamente pela colonização e pelo escravismo (e que, não por acaso, se prestou a um exercício de psicanálise histórica por Roger Bastide), pode ser a herança por excelência, “herança milenar”, transmitida diretamente pelas mãos da mãe e do pai e capaz de ultrapassar “as datas de validade/ das eras geológicas/ e das mudanças de governo”, muito mais duradoura do que “a madeira dos móveis”, que “empena”, ou o metal das “moedas/ do tempo do Imperador”, que “enferruja”. Daí que o poeta, “herdeiro e guardião” desse gesto a um só tempo familiar e erótico, que concentra na sua própria carne viva “o nativo e o enxertado” (o ameríndio, o afrodiaspórico, mas também o imigrante europeu não menos “sequestrado” para uma história que não era a sua), o repita, no presente, com os “rapazes” deitados no seu “colo”, atualização que, ressalta, não deve ser vista como “blasfêmia”, mas, pelo contrário, como “a insistência de todos os mamíferos/ em exigir prazer e alegria/ para além da ordem de povoar essa Terra”. Mas daí também que, em outro poema, acentue e amplie a ambivalência do gesto herdado — talvez de todos os gestos e de todas as heranças — ao lembrar “o cafuné do crânio da onça/ no crânio da capivara”. E bichos e plantas não são menos ancestrais, aqui, do que os avós e os pais, comportando uma poética da nomeação expressiva que acha sua teoria em forma de poema nos versos dedicados a Leonardo Fróes, em “No sítio da terra pequena”, assim como esse autorretrato algo perverso encerrado na crua e potente imagem que dá título ao livro, Cabeça de galinha no chão de cimento. Enfim, se há anacronismo nesta poesia, ele não é expressão de nostalgia, isto é, idealização do que passou de uma vez por todas, mas proposta de uma ligação direta entre possibilidades abertas no passado e seu renascimento no corpo individual e coletivo, presente e futuro; a elegia, aqui, não é lamento, mas anseio de alegria. Eduardo Sterzi
Sobre o autor
Ricardo Domeneck nasceu em Bebedouro, SP, em 1977, e vive e trabalha desde 2002 em Berlim, na Alemanha. Poeta, contista e ensaísta, publicou dez volumes de poemas e dois de contos, entre os quais se destacam: Cigarros na cama (Livraria Berinjela, 2011), Medir com as próprias mãos a febre (7 Letras, 2015) e Odes a Maximin (Garupa, 2018) no campo da poesia; Manual para melodrama (7 Letras, 2016) e Sob a sombra da aboboreira (7 Letras, 2017), em prosa. Uma seleção de todo o seu trabalho foi reunida em Mesmo o silêncio gera mal-entendidos: antologia 2000-2020 (Garupa Edições, 2021). Foi coeditor da revista Modo de Usar & Co. (2007-2017) e atualmente edita a revista Peixe-boi. Tem antologias de poemas publicadas na Alemanha (Körper: ein Handbuch, 2013), na Holanda (Het verzamelde lichaam, 2015), e seu livro Ciclo do amante substituível (7 Letras, 2015) foi publicado na Espanha (Ciclo del amante sustituible, 2014). Estão em preparo sua segunda antologia poética em alemão (Verlagshaus Berlin, Berlim) e sua primeira em inglês (World Poetry Books, Nova York).
Veja também
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