Um pequeno engano e outras histórias
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Nikolai Leskov
336 p. - 14 x 21 cm
ISBN 978-65-5525-211-8
2024
- 1ª edição
“Embora desconhecido no Ocidente, Leskov foi um grande mestre da narrativa, tal como Dostoiévski”, asseverou ninguém menos que Thomas Mann. Escritor independente num tempo de divisões políticas e estéticas claras, Nikolai Leskov (1831-1895) foi incompreendido pela crítica de seu tempo, já que o alto grau de experimentação de suas obras não permitia encaixá-lo na tradição da prosa realista do século XIX.
Verdadeiro artífice das palavras, criou uma linguagem literária rica e pitoresca, misturando expressões da língua arcaica e da fala popular que ouviu dos mais diversos tipos humanos, com os quais tivera contato em inúmeras viagens pelo vasto território russo em seus anos de trabalho como agente comercial, ainda antes de se tornar escritor. Somente nos anos 1920 (muito antes portanto do famoso ensaio de Walter Benjamin, “O narrador”), importantes teóricos do formalismo russo como Boris Eikhenbaum e Viktor Chklóvski seriam capazes de compreender o “estranhamento” linguístico e a sofisticação dos procedimentos de composição de Leskov.
Tudo isso pode ser plenamente verificado nesta nova coletânea de contos do autor, organizada, traduzida e comentada por Noé Oliveira Policarpo Polli, que assina também um alentado ensaio sobre a onomástica leskoviana — isto é, sobre os nomes dados pelo escritor a suas obras e personagens —, o qual se revela também uma análise profunda e minuciosa das histórias aqui reunidas.
Texto orelha
Na Rússia dos anos de 1860, com o pouco mais de liberdade política obtida graças às reformas liberais do tsar Alexandre II, o momento era de idear o futuro, projeto a que a contribuição artística era, se não exigida, ao menos esperada. Com sua visão muito particular dos problemas sociais e grande interesse por modos de vida que desapareciam, Nikolai Leskov (1831-1895) — a essa altura um escritor iniciante recém-chegado a São Petersburgo, o centro do poder político — seria um artista um tanto fora de lugar. Leskov partilhava do ceticismo dos intelectuais europeus em relação ao progresso, tal como o anunciara a Revolução Industrial. Para estes, “o povo” (o folk) se convertera em tema de interesse algumas décadas antes, quando a cultura popular tradicional se encontrava ameaçada por mudanças importantes, como o advento das estradas de ferro, que corroíam as especificidades culturais das províncias com ainda mais intensidade que as campanhas de cunho centralizador do governo ou o serviço militar obrigatório. Além dessas particularidades, uma série de desavenças miúdas no mundo das letras contribuiu para que Leskov fosse inicialmente atacado, depois, ignorado pela crítica profissional e tivesse, com isso, a carreira prejudicada. Todavia, Lev Tolstói, de quem esteve próximo nos últimos anos, garantiu-lhe que o futuro lhe seria generoso. E foram proféticas as palavras do grande escritor. Há mais de um século Leskov vem conquistando espaço, com sua destacada singularidade, entre os grandes escritores russos do século XIX. Com a ideia de “narrativa útil” — porque sedimenta lendas, possivelmente edifica, entretém e aproxima as pessoas —, Leskov produziu as muitas dezenas de histórias curtas que, de modo simples e encantador, hoje nos informam e comovem. São seu objeto temas ou eventos históricos como o pânico social causado pela ideia do “niilista terrorista”, em “Viagem com um niilista”; a existência de grupos protestantes russos surgidos no século XVII, dissidentes da ortodoxia cristã oficial, o que se faz de passagem em “O imortal Golovan”; motivos do folclore russo e imagens da mitologia eslava, como o rublo de prata trocado por um gato preto na noite de Natal e que nunca se gasta, em “O rublo mágico”; os espíritos zombeteiros em “O espírito da senhora Genlis”, e assim por diante. Os seis primeiros contos desta coletânea, de uma série escrita nos primeiros anos da década de 1880, respeitam as determinações do gênero Sviátki — a ação deve transcorrer nos doze dias entre as festas de Natal e Dia de Reis, ser de linguagem simples e com final feliz, trazer um problema que se resolva por milagre ou obra do acaso, desfazendo uma ideia pronta ou um preconceito arraigado. As duas últimas narrativas, concebidas como uma série de episódios ou aventuras do protagonista, de modo a obter-se do todo uma biografia dinâmica, contam a história de “O imortal Golovan” e “Toirovelha”, criaturas incomuns, inflexíveis e de elevadíssima moral. Era desejo de Leskov que o centro, por mais poderoso que fosse, não deixasse de conter a periferia, que o urbano não deixasse de ter notícias do rural, que o “camponês sedentário” e o “marinheiro comerciante” se alimentassem mutuamente de histórias, e que o futuro, por mais transformado que viesse a ser, guardasse as relíquias do passado. Nesse sentido, a sua contribuição é um sucesso de que a publicação desta coletânea, a tal distância no tempo do escritor, dá importante testemunho. Francisco de Araújo
Sobre o autor
Nikolai Semiónovitch Leskov nasceu em 1831, em Gorókhovo, na província de Oriol, filho de um investigador criminal. Em 1847, abandona o ginásio em Pánino e começa a trabalhar, mudando-se em seguida para Kíev. Ali frequenta como ouvinte a universidade, estuda a língua polonesa e trava conhecimento com diversos círculos de estudantes, filósofos e teólogos. Entre 1857 e 1860 trabalha como agente comercial e viaja por diversas regiões da Rússia, experiência que servirá de inspiração para muitas de suas histórias. Em 1862, já em São Petersburgo, inicia sua carreira literária, publicando contos e artigos na imprensa. Pensador independente, alguns deles o acabam indispondo com progressistas e conservadores. Em 1864, surge uma de suas obras mais conhecidas: a novela Lady Macbeth do distrito de Mtzensk. Em 1872 publica O anjo selado e uma série de textos anticlericais. Entre 1874 e 1883, trabalha no Ministério da Educação, onde acaba sendo dispensado por ser “demasiado liberal”, e nesse período lança algumas de suas mais famosas narrativas, como a novela O peregrino encantado (1873) e os contos “O canhoto vesgo de Tula e a pulga de aço” (1881), “Viagem com um niilista” (1882) e “A fera” (1883). Nos últimos anos de vida, segue produzindo contos e peças e até auxilia na edição de suas obras completas, mas, cada vez mais debilitado por uma doença cardíaca, vem a falecer em 1895.
Sobre o tradutor
Noé Oliveira Policarpo Polli possui graduação em Matemática pela Universidade de São Paulo e doutorado em Literatura Russa pela Universidade Estatal de Moscou. Atualmente é professor de língua e literatura russas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Publicou diversos artigos em revistas acadêmicas, além de traduções, como O violino de Rothschild e outros contos, de Anton Tchekhov (Veredas, 1991), a coletânea O bracelete de granadas, de Aleksandr Kuprin (Globo, 2006), os contos “Neve”, de Konstantin Paustóvski, e “Viagem com um niilista”, de Nikolai Leskov, que integram a Nova antologia do conto russo (1792-1998) (Editora 34, 2011), e a coletânea de contos de Nikolai Leskov, Homens interessantes e outras histórias (Editora 34, 2012).
Veja também
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